Como era tradi??o, na altura do Natal, eu, a minha mulher e a minha filha passámos uma semana de férias em casa dos meus avós, em Viana do Castelo. Algumas das entradas no diário que encontrara passavam-se em ou perto dessa cidade, pelo que aproveitei a oportunidade para as investigar.
Uma noite, depois do jantar, desculpando-me dizendo que ia falar com alguns velhos amigos, saí e dirigi-me até à margem do rio Lima. A desculpa até nem era uma absoluta mentira. Durante a tarde, havia telefonado a um amigo de infancia para ele me emprestar um barco, e ainda conversámos durante uma meia hora antes de eu entrar a bordo e come?ar a remar.
Estava ali para investigar umas sombras e silhuetas peculiares, e estranhos movimentos nos juncos que o autor do diário havia visto nas ínsuas próximas da foz do rio. Como habitual, o meu antecessor n?o havia investigado a quest?o a fundo, nem sequer saíra da margem, mas eu estava determinado a descobrir o que havia ali.
Como tal, remei até à maior das ínsuas, popularmente conhecida como Camalh?o, que se situava a pouco mais de uma centena de metros do ancoradouro onde o meu amigo tinha o barco.
Mal cheguei à ínsua, desembarquei, prendi a ancora a um dos enormes torr?es e adentrei-me por uma regueira próxima. Como a maré estava em baixo, as margens desta, mais os longos juncos, erguiam-se acima da minha cabe?a, pelo que n?o conseguia ver nada em volta. Porém, tendo passado uma parte da minha infancia naquelas ínsuas, sabia que aquela regueira me levaria ao cora??o do Camalh?o de forma mais rápida do que atravessando os juncos.
Logo após a primeira curva, deparei-me com um mau presságio. De uma po?a na quase seca regueira, a cabe?a decepada de um homem olhava para mim. Estava inchada e mostrava sinais de putrefa??o e de ataques de animais. De facto, a parte ainda submersa estava, naquele momento, a servir de alimento a vários camar?es do rio.
Após o susto e choque iniciais, cheguei à conclus?o que n?o devia ter raz?o para me preocupar. N?o era invulgar encontrar corpos e partes de corpos no rio, vítimas de naufrágios trazidas e depositadas pela maré alta. Aquela cabe?a n?o devia ter nenhuma rela??o com as silhuetas que eu tinha ido ali investigar.
Continuei a avan?ar, tomando uma nota mental para mais tarde avisar as autoridades quanto à cabe?a.
Tinha percorrido poucas dezenas de metros, quando um diminuto vulto negro saltou sobre a regueira mesmo à minha frente. De imediato, subi a margem. Quando cheguei ao topo, n?o o vi, mas os movimentos dos juncos denunciavam-no, e consegui segui-lo.
Corri atrás dele durante várias centenas de metros, as pontas dos juncos atravessando-me as cal?as e ferindo-me as pernas.
Finalmente, chegámos a uma área mais limpa, coberta apenas por erva baixa, situada debaixo da chamada Ponte Nova. Foi só ent?o que vi o que estava a perseguir: um pequeno ser humanoide, com pouco mais de dez centímetros de altura. Este desapareceu atrás de um enorme monte de ramos de árvore e embalagens de plástico, lixo certamente trazido pela corrente e pelas marés.
Unauthorized content usage: if you discover this narrative on Amazon, report the violation.
Continuei a segui-lo, contudo, assim que cheguei aos detritos, ouvi uma voz grave e pausada vinda de uma regueira próxima.
– Quem és tu? O que fazes no meu reino e porque persegues um dos meus súbditos?
Eu ia responder, mas a criatura que falara levantou-se e deixou-me sem palavras. Tratava-se de um enorme ser com quase o dobro do meu tamanho. N?o podia ser apelidado de gordo, embora n?o fosse propriamente magro, e, sob o luar, parecia ter uma pele pálida como marfim. Sobre a cabe?a levava uma coroa feita de juncos entrela?ados, o que, juntamente com o facto de se ter referido, pouco antes, aos seus súbditos, levou-me a concluir que ele era o rei das criaturas cujas silhuetas o meu antecessor vira.
O enorme ser saiu da regueira e aproximou-se do monte de detritos. Afastei-me para lhe dar passagem, mas n?o me atrevi a tentar fugir. Para minha surpresa, ele sentou-se sobre o lixo, e só ent?o percebi que se tratava de um tosco trono.
- Diz-me lá o que estás aqui a fazer – insistiu a criatura.
Contei-lhe sobre as silhuetas e como fui até ali para descobrir o que eram.
– Parece que alguns dos meus súbditos precisam de come?ar a ter mais cuidado – respondeu ele, no fim. - Especialmente agora.
- Especialmente agora porquê?
– Os meus súbditos andam a desaparecer. N?o sabemos como nem porquê. O que me leva a desconfiar de ti. Como é que eu sei que n?o és tu o raptor. Eu vi-te a perseguir um dos nossos.
Tentei justificar a minha curiosidade. Até lhe contei sobre as minhas idas à cidade dos mortos e ao bar das fadas.
Enquanto eu falava, uma bizarra criatura emergiu dos juncos. Andava em quatro patas, embora o seu corpo fosse esguio e se contorcionasse como o de uma serpente, mas tinha uma face vagamente humana. Ele aproximou-se do rei, ergueu-se nas pernas de trás e sussurrou-lhe algo ao ouvido. Depois, desapareceu outra vez nos juncos.
O rei deixou-me terminar a minha explica??o.
- Acho que acredito em ti – disse, por fim. - Se fosses o responsável pelos desaparecimentos, n?o tinhas deixado as minhas sentinelas ver-te.
Apontou com a cabe?a para o ponto por onde a criatura serpentiforme desaparecera.
Mais calmo, ocorreu-me que os desaparecimentos nas ínsuas talvez estivessem relacionados com os dos mortos e contei ao rei o que descobrira no Gerês.
– Curioso - respondeu ele. - Agora preciso que vás embora. Estou a juntar o meu povo aqui e vou precisar de falar com ele.
N?o esperei que me dissesse uma segunda vez. Entrei nos juncos e dirigi-me ao barco. Conforme atravessava o Camalh?o, avistei várias pequenas sombras no meio do rio, no espa?o entre as ínsuas. Após olhar mais atentamente, percebi que se tratavam de troncos e até de pequenas folhas de árvore carregando várias das criaturas que eu agora sabia viverem ali.
Ainda vi as primeiras desembarcar no Camalh?o, mas logo retomei a caminhada até ao barco, temendo que o Rei das ínsuas me expulsasse. Ou pior.
Remei de volta à margem e, depois de devolver o barco, regressei a casa dos meus avós. Enquanto conduzia, n?o conseguia deixar de pensar nos desaparecimentos. Haveria realmente uma rela??o entre os das ínsuas e os dos mortos? Ainda n?o sabia o suficiente sobre aquele mundo paralelo para responder a essas perguntas, mas ia continuar a investigar. A minha curiosidade nunca me deixaria parar.