Após a minha descoberta do Bar das Fadas, e ter confirmado que o relato no diário que havia encontrado n?o era apenas fic??o, n?o conseguia deixar de pensar nisso. A minha mulher, os meus amigos, até os meus colegas de trabalho, repararam que eu andava mais distraído. Porém, eu tinha decidido n?o contar nada a ninguém. Naquela altura, n?o tinha a certeza como aquele conhecimento nos podia afetar e, além disso, temia que os pudesse por em perigo.
Como tal, tive de esperar algum tempo até ter uma oportunidade de embarcar noutra explora??o sem levantar suspeitas. Esta surgiu quando a minha sogra ficou doente e a minha mulher, juntamente com a nossa filha, foi tomar conta dela.
Depois do encontro com Alice, quis deixar passar algum tempo antes de voltar ao Bar das Fadas, pelo que decidi explorar outro local. Após reler mais uma vez algumas das entradas do diário, decidi viajar até ao Gerês e visitar uma aldeia abandonada na serra onde, supostamente, durante a noite, os mortos se levantam do cemitério e partem numa prociss?o pelas encostas e vales.
Saí de casa ainda de dia, porém, quando entrei na estrada que subia a montanha, o Sol já se havia posto. Apesar de as encostas mais elevadas do Gerês n?o terem muitas árvores, a escurid?o tornava difícil encontrar a aldeia, mesmo com a ajuda de um GPS. Finalmente, decidi parar num pequeno espa?o na berma da estrada, junto ao ponto onde a aldeia supostamente ficava.
Saí do carro e comecei a procurar a pé. Com a ajuda da lanterna mais poderosa que tinha, encontrei as ruínas que procurava, situadas um pouco abaixo de onde havia estacionado.
Os telhados já haviam ruído, assim como muitas paredes e soalhos de madeira. Por todo o lado, vigas tombadas erguiam-se no céu noturno, como costelas de gigantescos animais.
Com a ajuda da lanterna, procurei a melhor maneira de descer. N?o havia propriamente um trilho, mas, entre os penedos e as moitas de silvas, consegui encontrar uma passagem.
Após vários trope??es e escorregadelas, evitando, por pouco, algumas quedas aparatosas, cheguei à aldeia abandonada. As suas ruas de terra batida, já de si estreitas e obstruídas com rochedos, estavam cobertas de escombros, silvedos e erva, tornando o avan?o bastante difícil. O silêncio da noite era apenas quebrado pelo som de animais a rastejarem para longe e o pio das corujas que se refugiavam nas ruínas.
Finalmente, cheguei ao que restava da igreja local. O topo da torre sineira já havia caído, assim como o telhado, contudo, a fachada parecia intacta, embora um nicho vazio sobre a porta me fizesse suspeitar que tivesse ali existido a estátua de um santo, agora desaparecida. Teria sido, certamente, roubada por alguém para depois vender.
Ao lado da igreja, rodeado por uma baixa parede de pedras soltas, encontrei o lugar que procurava: o cemitério. Segundo o diário, era dali que os espíritos dos mortos partiam na sua prociss?o noturna.
Lápides de pedra partidas e gastas, ocupavam o local, juntamente com peda?os de madeira apodrecida que, em tempos, teriam sido cruzes.
Sentei-me do lado de fora, encostado ao muro, e esperei pela meia-noite, a hora a que o meu antecessor registou ter come?ado a ver os fantasmas. Estávamos no fim do Outono, pelo que o frio já apertava nas montanhas. Em parte, ainda bem, pois foi apenas gra?as a ele que n?o adormeci.
Quando a hora, finalmente, chegou, n?o fiquei desapontado. No preciso instante em que o relógio do meu telemóvel marcou meia-noite, olhei para as campas. Sobre estas, come?aram a formar-se vultos. A princípio, eram praticamente invisíveis, mas, aos poucos, come?aram a tomar uma forma branca e translúcida. Tratavam-se de pessoas envergando vers?es fantasmagóricas das roupas, chapéus e len?os típicos daquela regi?o até muito recentemente.
Conforme iam tomando as suas formas finais, os espíritos deixavam o cemitério e come?avam a descer a encosta, enquanto, sobre as campas, novos vultos se formavam. Deixei que todos se juntassem à prociss?o, antes de come?ar a segui-los.
Desci a encosta por um carreiro, atravessei uma velha ponte de pedra e até caminhei por uma geira romana. Os fantasmas percorreram quilómetros de terreno, durante quase duas horas.
De súbito, a norte, avistei uma fila branca que descia outra encosta como uma gigantesca serpente albina. N?o tardei a aperceber-me de que que se tratava de outra prociss?o de almas.
The narrative has been illicitly obtained; should you discover it on Amazon, report the violation.
Mais três surgiram pouco depois, saídas de vales e montanhas, e, uma a uma, juntaram-se, continuando a avan?ar para este. Mais do que a uma prociss?o, agora assemelhavam-se a uma coluna militar.
Ent?o, para minha surpresa, os mortos come?aram a voltar ao solo. Pouco a pouco, foram desaparecendo para debaixo de terra, até nenhum se encontrar à superfície. Estava novamente sozinho, na escurid?o das montanhas, com a minha lanterna.
Aproximei-me do sítio onde os fantasmas tinham desaparecido e procurei, sem grande esperan?a, por alguma maneira de os seguir. Após quase meia hora, encontrei um buraco no ch?o, grande o suficiente para eu conseguir passar. Apontei a lanterna lá para dentro. N?o era particularmente fundo, tinha apenas uns cinco metros, e pareceu-me ver uma caverna que partia dele em dire??o a oeste.
N?o tinha comigo equipamento de escalada, mas a parede do buraco tinha apoios suficientes para eu conseguir descer sem grandes dificuldades. Em poucos minutos, cheguei ao fundo e confirmei que, realmente, havia uma caverna. Apontei a lanterna para o seu interior e vi que se alongava por uma centena de metros, até chegar a uma curva e mudar de dire??o.
Cuidadosamente, pois n?o sabia como os mortos iam reagir caso me encontrassem ali, adentrei-me na caverna. Cheguei à curva sem qualquer percal?o, porém assim que a dobrei, dei de caras com dois fantasmas. Apesar do meu cuidado, eles avistaram-me imediatamente. Afinal, sem a luz da lanterna, n?o conseguia ver nada ali, mas esta denunciava-me claramente.
Olhei para trás, pensando em fugir, mas nunca conseguiria subir até à superfície antes de eles me alcan?arem.
Os fantasmas aproximaram-se lentamente e com cuidado, como se n?o me quisessem assustar. Embora estivesse desconfiado, esperei por eles. N?o pareciam agressivos.
Um deles segurava uma vela, que estendeu na minha dire??o quando chegou junto a mim. A medo, peguei nela. No instante em que a agarrei, transformou-se numa tíbia humana. Surpreso, larguei-a e recuei alguns passos.
Os dois fantasmas come?aram a rir às gargalhadas.
- A cara dele - disse um dos espíritos.
Durante alguns instantes, fiquei a olhar para eles, atónito.
- Desculpa lá, amigo, mas n?o resisti - disse-me o fantasma que me dera a vela.
- Quem s?o vocês? - perguntei.
- Os espíritos dos mortos, claro. Nem todos temos a sorte de descansar em paz.
Pareciam amistosos, pelo que decidi continuar a fazer perguntas:
- Porque vêm para aqui? Porque n?o ficam junto dos vossos cemitérios?
- Porque, no fundo deste túnel, fica a nossa cidade. Nós só ficámos para trás porque te vimos a seguir-nos e decidimos divertir-nos um bocado - disse o fantasma da vela, sorrindo.
- Cidade?! - disse eu, admirado. - Os mortos têm uma cidade?
- Claro - respondeu o outro fantasma. - Vamos andar por aqui para sempre. Precisamos de um sítio onde afastar a pasmaceira. Anda, nós mostramos-te, como compensa??o pelo susto.
Segui-os através do túnel durante uns quinhentos metros, passando por diversas curvas. Por fim, chegámos a uma caverna gigantesca, maior do que qualquer outra que eu tinha visto antes.
Encontrávamo-nos numa saliência em uma das paredes, mas a caverna prolongava-se várias centenas de metros para baixo, o seu fundo sendo apenas visível gra?as à pálida luminosidade emitida pelos fantasmas.
Havia muitas mais saliências nas paredes para além daquela onde me encontrava. Nas maiores, erguiam-se edifícios de todos os períodos históricos de Portugal. Assombrado, avistei casas circulares castrenses, vilas romanas, casebres medievais, casas de campo, prédios pombalinos e, até, um grande condomínio de múltiplos andares, entre outros. Nada ligava as saliências umas às outras, pois os fantasmas flutuavam entre elas.
Ao contrário do que acontecera no Bar das Fadas, a minha presen?a na Cidade dos Mortos n?o passou desapercebida. Todos os fantasmas que passavam olhavam para mim com um misto de curiosidade e surpresa.
- Já há muito que n?o vinha aqui um vivo - disse a criatura que me dera a vela.
- Nunca ouvi falar que já tivesse acontecido antes - comentou o outro.
De súbito, do fundo da caverna, surgiu um outro espírito, com ar zangado.
- O que é que vocês, seus idiotas, fizeram? Trazem um vivo para aqui, ainda por cima agora, com estes desaparecimentos todos?
- Desculpe Sr. Presidente - disseram os dois fantasmas em uníssono, olhando para o ch?o, como duas crian?as admoestadas.
- Desaparecimentos? - perguntei eu, curioso.
- Sim, nos últimos meses têm desaparecido alguns fantasmas - disse o espírito que me dera a vela.
- Nunca aconteceu antes - comentou o outro. - Os mortos sempre aumentaram, nunca diminuíram.
- Vocês s?o capazes de estar calados! - gritou o presidente.
Virou-se, ent?o, para mim.
- E quanto a ti, sai daqui enquanto podes. E nem penses em voltar. Vamos mudar a entrada de sítio.
O tom do presidente n?o deixava espa?o a discuss?o, e fiz o que ele disse.
No caminho de regresso ao carro e, depois, enquanto conduzia para casa, uma pergunta n?o me saía da cabe?a: como podiam os mortos estar a desaparecer? Depois da minha visita ao Bar das Fadas e de uma leitura mais atenta do diário que encontrei, a existência de fantasmas, ou, até, da sua incrível cidade, n?o me surpreenderam particularmente, mas essa quest?o fazia com que arrepios me subissem pela espinha. Na altura, n?o percebia bem porquê, contudo, acabaria por descobrir.